Maio 19, 2024
Home » Série | O Senhor dos Anéis – Os Anéis de Poder

Vinte anos atrás saiu a trilogia O Senhor dos Anéis, que hoje em dia tem status de clássico. Fez um enorme sucesso, foi bem recebido por críticos, ganhou vários Oscar (naquela época o prêmio tinha credibilidade); e faz aniversário com a convicção de uma adaptação feita com paixão e competência.

Dez anos atrás saiu a trilogia O Hobbit. Foi menos bem recebida em partes, já que teve enorme sucesso comercial. Não envelheceu bem, já que a maior parte das cenas foi feita em CGI, o roteiro é esburacado e as mudanças na história para transformar um livro infantil de 300 páginas numa trilogia épica de quase 8 horas de duração não foram bem feitas, desagradando tanto fãs quanto críticos.

Agora em 2022 o pessoal achou que já estava na hora de fazer mais dinheiro com a marca e resolveu investir pesado na aquisição de mais material do Tolkien. Mas ele publicou apenas dois livros que se passam na Terra Média, e esses dois já foram adaptados. Se não é pra fazer refilmagem, como que os roteiristas vão trabalhar? Felizmente para todos, o Tolkien tem uma tonelada de material que ele não publicou: livros quase prontos que foram recusados pelas editoras, contos inacabados e várias versões anteriores de O Senhor dos Anéis que foram descartadas pelo autor quando terminou a obra. Então só o que os produtores dessa série tiveram que fazer foi comprar o direito de adaptar umas páginas que o Tolkien escreveu e roteirizar a partir disso. Pronto, problema resolvido!

Mas aí tem o seguinte. Alguém aí já leu alguma coisa que o Tolkien escreveu sem ser O Senhor dos Anéis e O Hobbit? Pode ser os apêndices de O Senhor dos Anéis, já aceito. Não? O Silmarillion, então. Alguém? Pois é. Já deu pra contar que são pouquíssimos. E todos nós sabemos o que os produtores e roteiristas tiveram que enfrentar na hora de inventar essa série de Os Anéis de Poder. Tolkien é muito chato. Ele escreve como se fosse uma enciclopédia sobre a história do mundo, só que o mundo dele é a Terra Média. Quase não tem diálogo, as ações são todas épicas, sérias, impressionantes e chatas. Teve um motivo para O Silmarillion ter sido recusado pelos editores, mesmo depois do sucesso de vendas que foi O Senhor dos Anéis: o livro é chato de ler!

Os herdeiros do Tolkien não são idiotas, e colocaram preços de um bilhão de trilhões no material dele, e mesmo assim a Amazon comprou, mesmo sendo quatro linhas, mesmo sendo chato, porque apostaram que o que vende é propriedade intelectual e não qualidade de roteiro. Vou ser legal aqui e dizer que, ao contrário de O Hobbit, a produção da série foi feita com muito esmero, e nesse ponto pude sentir aquele assombro ao me deparar com a beleza das roupas, das armas, dos cenários. Mas pra você adaptar umas quatro páginas de um texto de um cara que escreve chato, tem que ser um roteirista mais incrível que tudo. E o pessoal de Os Anéis de Poder falhou nessa tarefa.

O primeiro problema que eles enfrentaram foi a falta de hobbits. Se os hobbits foram descobertos pelos outros povos durante O Senhor dos Anéis, uma história que se passa centenas de anos antes não poderia ter hobbits interagindo com o resto, certo? A solução que eles acharam foi colocar antepassados dos hobbits na história sem que eles toquem remotamente a trama principal. Isso ficou sem graça por vários motivos. Se não tem ligação com a trama principal, por que eu deveria me importar com os personagens hobbits? A história delas deveria ser muito interessante para que eu sentisse aquela “uhul agora vou ver o que acontece com os hobbits finalmente” sendo que na verdade eu só senti tédio. Alguns momentos tocantes, como a música da caminhada ou a interação entre a família de Nori, não compensaram a total falta de conteúdo desse núcleo. Um cara aparece. Ele é o Gandalf mas a série finge que isso é um mistério. Ele não consegue falar, é um mendigão, as hobbits não querem ajudar ele mas ajudam, ele tem surtos de poder que fazem coisas incrivelmente poderosas como botar fogo numa árvore e matar uns vagalumes, e daí é isso. Se é pra forçar hobbit na história pra poder ter essa conexão com os filmes, que fosse uma trama que não fosse chata e previsível. Os atores fazem o que dá, mas é muito tempo de nada acontecendo para tantos episódios.

A segunda questão, que talvez eu devesse ter falado em primeiro devido o tamanho do buraco, é o protagonismo. Alguém decidiu que a Galadriel era uma boa protagonista, e foi um erro muito terrível. Como que vai ter uma protagonista interessante sendo que ela é a mais poderosa de todos os elfos maravilhosamente incríveis da história? O resultado de colocar ela no centro da história gerou uma série de problemas. Exemplo: se ela é a maior e melhor de todas, ela pode fazer tudo muito incrivelmente bem, certo? Então como que ela vai enfrentar qualquer perigo e não ganhar sempre? Resposta: sendo idiota e criando ela mesma os obstáculos, com mal criação e burrice. No começo a gente fica meio sem entender o que está acontecendo, já que estamos acostumados com a Galadriel sábia e altiva dos outros filmes. Mas depois da terceira ou quarta reação impetuosa e imatura de uma super elfa de centenas de anos de vida, aí já fica mais chato. É inverossímil dentro do próprio universo que eles criaram. Eu entendi que a expectativa foi tentar fazer a personagem mais crível e interessante quando deram essa profundidade pra ela; a realidade é que ela é perfeita a não ser quando vira outra pessoa e fica mimada. De novo, a atriz fez o que deu com o que tinha, mas no final das contas ficou alternando entre olhar altivo de guerreira eterna perfeita e olhar mimado de guerreira eterna perfeita que não aceita ser contrariada. Ela faz decisões que são tão inverossímeis que fica engraçado e vira meme: ela pula do barco no meio do oceano com o intuito de nadar de volta para o continente; trata mal a rainha da terra onde ela vai parar, chamando os humanos de Númenor de inferiores e ordenando que ela receba o que quer; insiste em confiar num aleatório que ela conhece numa jangadinha. Pra não falar da super revelação final que foi reveladora só pra ela que foi cega, porque a gente já sabia desde o terceiro episódio.

Aí tem o terceiro problema e terceiro núcleo da história: o controverso elfo negro e os humanos das Terras do Sul. Quando eu vi a polêmica sobre o elfo negro, pelo tamanho do choro, eu achei que eles tivessem transformado um dos elfos de Tolkien num elfo de pele escura. Mas nem isso! Eles inventaram um personagem aleatório que faz pouca coisa e decidiram que ele seria interpretado por um ator negro. Nenhum outro elfo na série é negro ou mesmo não-branco. Os outros atores que não são brancos são um ou dois anões e vários hobbits. Pra variar, o choro dos racistas foi muito maior do que a representatividade da história. Arondir consegue fazer quase nada, incluindo ser capturado e escravizado por orcs (olha que interessante que o único elfo não branco foi justamente o escravizado), ficar olhando os peitos de uma mulher que ele viu nascer e perder o objeto claramente mágico que poderia destruir tudo (spoiler: ele perde o objeto e tudo é destruído). O par romântico dele, a Bronwyn, sofre do mesmo problema que o Isildur no outro núcleo que eu já falo, que é a que todo mundo que leu os livros já sabe o que vai acontecer com o romance deles a não ser que a série fuja totalmente do material base e daí qual o objetivo de gastar milhões de dólares pra não adaptar certo etc. Além de ser a mãe-solteira-dramática-corajosa, a Bronwyn serve pra mandar o filho dela Theo fazer algo que ele vai desobedecer em seguida, lançar olhares lânguidos para o Arondir, e fazer discursos motivacionais em todos os episódios. O velho malvado é só um velho mala que fica sendo velho e no final tem a grande atitude de estragar tudo, e o moleque Theo é só criança em série: irritante. Quando finalmente as coisas começam a animar e a “guerra” começa, e o pessoal imediatamente aceita o novo rei, tem as duas piores cenas da temporada. Adar contra Galadriel e a criação de Mordor.

Considerando que Tolkien era maniqueísta e (vamos todos juntos agora) racista também, a gente tem a seguinte situação, escrita bonitinha lá nos livros pra ninguém duvidar: os elfos foram criados pelo deus bonzinho, eles são altos, loiros, lindos, inteligentes, imortais, poderosos, brilhantes; enfim, os maravilhosos seres de luz. Aí um seguidor poderoso desse deus bonzinho decidiu começar a seita dele, pegou os elfos e os torturou até transformá-los em seres corruptos e maléficos, que odeiam a luz e vivem na escuridão. Esses daí são os orcs ou goblins. Ele também pegou os ents, que foram acordados pelos elfos, e os corrompeu para criar os trolls; e em geral pegando todas as criações de luz e bondade e transformando em escuridão e maldade. Até aí, vocês podem discutir comigo que não é racista só porque os seres de luz são bons e os seres de escuridão são maus, já que esse maniqueísmo é tradicional em várias culturas etc. Só que aí o Tolkien veio e falou que “os povos do sul”, que são de pele escura, andam em olifantes, moram no deserto e são obviamente uma versão fantasiosa dos povos árabes e africanos, são justamente os povos que foram lutar ao lado de Sauron durante O Senhor dos Anéis. Ah, você diz, mas eles foram enganados por Sauron… e aí os homens de Gondor, os brancos ilustres, letrados e bondosos, não executaram os sobreviventes e em vez disso ensinaram eles sobre Sauron e tudo mais. Racismo, chama.

Mas essa segunda parte é um pouco distante do que eu quero falar; perdoa que se o assunto é Tolkien eu escrevo tese em vez de postagem. Eu estava falando sobre o maniqueísmo. Então elfo é bom e de luz, orc é mau e da escuridão. E aí na série eles colocam Adar, que é obviamente um elfo branco porém com umas cicatrizes, sendo chamado de pai pelos orcs, organizando uma terra para eles, e falando pra Galadriel que “todas as raças merecem viver” ou algo assim; e Galadriel branca linda com os cabelos loiríssimos gritando na cara dele que não, todos vocês devem morrer! E então você pensa, “calma”. Então os orcs merecem viver? Eles sentem falta de uma terra deles? Eles não são só os seres de escuridão maligna dos filmes? O Adar chora quando um orc morre. A Galadriel está assassinando todos os orcs que ela vê. Quem é o mocinho?

Você pode me falar daí que os elfos do Tolkien são mesmo esses guerreiros arrogantes supremacistas raciais, algo que pode ser visto claramente em O Silmarillion. E a série mostra como o rei Gil Galad tem como principal objetivo a sobrevivência da raça dos elfos, mesmo que isso signifique causar conflito e talvez até guerra com os anões. Parece então que a ideia de criar os anéis de poder veio não só com o objetivo da sobrevivência dos elfos, mas também com um objetivo de controle e superioridade entre as raças, algo reforçado pela participação especial de Halbrand explicando os metais pro Celebrimbor. No fim das contas fiquei com a impressão de que teve uma tentativa de fazer vilões horríveis e malvados serem só conflitados nessa versão, como se eles estivessem tentando enganar a Galadriel com esse papo de “a gente é bonzinho, confia”. Mas aí o roteiro usa frases que pessoas reais falam para terem direitos básicos assegurados e eu fiquei tipo…?

E aí tem o vulcão. Gente. A Galadriel pular no meio do oceano foi sem noção mas deu pra aguentar. Mas o vulcão explodindo na cara das pessoas e só um pessoalzinho se machucou, galera, tá de boa; caiu uns telhados ali, as casas destruíram, foi um pouco triste e a moça ali até ficou cega. Quer dizer.

Mas agora vamos falar das coisas boas. Eu já falei que a série é maravilhosa de linda e que os figurinos são impecáveis. Já falei também que a comunidade dos hobbits é fofa (mesmo que eles meio que deixem os deficientes morrerem?). Mas para além disso, o arco dos anões e do Elrond é muito legal; os personagens em Moria são os mais interessantes; é a parte que eu fiquei mais empolgada e que mais me convenceu a continuar. O casal Disa e Durin é muito bom e roubou todas as cenas em que estavam, e mesmo o Elrond sendo um chatinho, o personagem ficou bem de acordo com o que vimos na trilogia de filmes. Apesar dos roteiristas não terem decidido o que fazer com os anéis e qual vai ser a mitologia real, já que o Tolkien deixou tudo bem no ar, a conversa deles e as motivações de Gil Galad, Celebrimbor e do rei dos anões é a parte que mais faz sentido. Halbrand é lindo demais, virei fangirl imediatamente e quero fanfic na minha mesa agora, toda cena que ele aparece é ótima me deixa. Míriel linda, adorei. Isildur, a irmã e os amigos primeiro que tive zero interesse em qualquer coisa que eles fizessem, segundo que nossa, será que o Isildur sobreviveu lá? E finalmente porém não menos importante, Elendil: maravilhoso, incrível, tudo o que eu esperava – caracterização impecável, cara lindo, cada cena que ele aparece me lembra da magnificência dos filmes de O Senhor dos Anéis, é só olhar pra ele que eu vejo os Argonath. Perfeito.

A série teve um sucesso moderado, e ter saído logo junto com House of the Dragon não ajudou. Na era do hype e hate pela internet, ter colocado atores não-brancos pra variar teve resultados mistos. Os racistas odiaram muito, aí o pessoal anti-racismo caiu em cima dizendo que era tudo racismo. Aí veio a série e tem pouquíssimos personagens negros, a maioria inventados só para a série. Disa e Marigold e Míriel estão bem, mas fiquei em cima do muro sobre o único elfo negro que é o único com arco romântico e por acaso também escravizado e o Sadoc é o negro mágico, desculpa. Os fãs hardcore dos livros reclamaram tanto quanto reclamaram na época do lançamento de A Sociedade do Anel vinte anos atrás, e sobre coisas igualmente idiotas como o design das orelhas dos elfos. A crítica especializada em geral gostou do visual e reclamou do roteiro lento e dos personagens rasos.

A produção tinha uma tarefa difícil, que era preencher as lacunas deixadas por alguns parágrafos de exposição do Tolkien. Fizeram algumas escolhas acertadas, mas em geral achei uma série irregular com visual maravilhoso, um pouco lenta mas sem incomodar. Saber as histórias originais é um pouco triste porque fica aquele gosto de “poderia ter sido tão melhor”. Mas, como sou a nova maior fã do Halbrand, e é ele andando sexy evil overlord justamente na última cena, e como eu sempre vou consumir O Senhor dos Anéis da mesma forma que eu assisto Star Wars mesmo que só pra reclamar, eu vou sim ver de novo e vou sim ver a segunda temporada. É mais forte do que eu.

The Lord of the Rings – The Rings of Power (2022). Showrunners: J. D. Payne e Patrick McKay.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *