Maio 19, 2024
Home » The Witcher | Andrzej Sapkowski

O homem que não entende de mulher mas quer muito escrever personagens femininas fodas: vai dar errado. Imploro aos deuses da literatura que o próximo autor de fantasia que eu pegar pra ler seja um cara que tenha conversado com pelo menos uma mulher na vida dele sobre os temas que ele quer abordar na história. Especialmente se o livro vai dar lições de moral sobre assédio, abuso, estupro, aborto.

Eu só tinha ouvido falar dos jogos do “The Witcher”. Por acaso comprei os livros, que estavam encostados aqui no buraco negro das minhas estantes porque eu parei no terceiro livro. Parei porque estava meio machista, mas quando saiu a série e eu achei legal, resolvi dar a segunda chance pros livros já que a ambientação era de fato boa. Contemporâneo do Martin e dos livros do Gelo e Fogo, Sapkowski também tem o mesmo estilão de ‘eu escrevo fantasia séria e no meu mundo as pessoas falam palavrão e fodem muito’, característico da vertente da fantasia popularizada nos anos 90, que queria ao mesmo tempo se distanciar dos épicos de Tolkien e dos pulps mais bobinhos de Conan. O livro tem uma ambientação interessante, com monstros da mitologia do norte da Europa, um protagonista divertido justamente por ter características do anti-herói, e uma novidade: os ‘witchers’, que são humanos mutantes treinados para matar os monstros.

Daí que logo no começo da história o Geralt, O THE WITCHER, se apaixona pela Yennefer, uma feiticeira mega poderosa. Aí ele dá uma forçada de barra leve que eu perdoei porque o autor é homem e eles passam o resto da história tendo um relacionamento de vai-e-volta. Enquanto na série da Netflix eles acertaram ao dar bastante espaço pra Yennefer, nos livros ela é coadjuvante e o histórico dela só aparece com flashbacks curtinhos; mas é o suficiente para sabermos que ela era feia e ficou bonita através da magia. Então temos: uma feiticeira extremamente poderosa de mais de 500 anos de idade, que é constantemente temida e alardeada por onde passa… que usa sua magia principalmente para duas coisas: 1 ficar bonita e 2 reverter sua infertilidade. Nas horas vagas ela convence pessoas a obedecê-la, cobra caro para fazer magia e trata mal as outras feiticeiras que dão em cima do the witcher.

Me incomodou? Certamente. Afora a questão de parir, que de acordo com o autor vai assombrar qualquer mulher não importa a idade profissão ou inclinação, temos a questão da beleza. As feiticeiras precisam ser bonitas pois é o que a profissão exige – de acordo com: o autor. Claro que isso gerou um videogame onde todas as mulheres são fatalmente belas e poderosas e querem muito dar para o protagonista e fazer filho com ele.

Isso daí nem achei o pior, então vai vendo.

Depois de um certo tempo conhecemos Milva, uma humana arqueira que ajuda os elfos e as dríades na guerra contra os humanos. Ela trata o Geralt muito mal mesmo (motivo: sei lá) mas quando ele se recupera do espancamento que tomou e resolve ir atrás da criança lá, Milva inexplicavelmente resolve ir junto pois se sente muito atraída pela missão do Geralt. Mas isso não significa que ela passe a tratá-lo bem. Ela vai junto, resmungando. Só que depois de um tempo o pessoal descobre que ela está grávida (ela não sabe de quem porque participou de uma suruba dos elfos antes de uma batalha) e ela não quer ter um bebê; aí tem um cara lá que oferece uma poção abortiva pra ela, e o Geralt não fica feliz com essa ideia porque aborto errado. Como ele e a Milva tem essa conexão inexplicável, ele vai lá conversar com ela, eles trocam olhares ternos, e ela decide não abortar. Lembrando que ela é uma arqueira caçadora numa zona de guerra, que não sabe quem é o pai da criança e nem se ele está vivo, que vive na estrada e não tem família, e que acabou de decidir seguir uma missão suicida com um cara estranho que tem pouco amor à vida. Mas ela decide: ter o bebê. Daí duas cenas depois tem uma treta, eles são atacados (zona de guerra!) e ela sofre um aborto espontâneo e quase morre. Depois disso ela fica chateada, para de falar com as pessoas e deixa de ter relevância na história.

Enquanto isso, temos a heroína Ciri, que atravessou o mundo como uma jovem ingênua porém independente de seus 14 anos, e o livro de repente passa de ‘nossa, será que ela vai conseguir se livrar dessa, mesmo sendo confiante porém inexperiente’ para ‘quem será que vai tentar estuprar ela agora’. Sério. A trama do livro é: todos querem estuprar a Ciri. Que tem, sendo otimista, entre 15 e 16 anos. Romantizar gravidez é uma coisa: o mundo está aí e não é fácil sair do lugar comum quando se fala disso. Mas sexualizar jovens de 15 anos incluindo cenas picantes de sexo sem consentimento no seu livro: você tem problemas. 

E para finalizar com cereja: cenas de tortura? Vai estar tendo, de preferência com mulheres. Ameaça de estupro de 100% das mulheres coadjuvantes? Teve todas. Os horrores da guerra: homens morrem e mulheres são estupradas. Motivação de 100% dos vilões: estuprar as protagonistas.

Gente. Olha.

Estupro não é divertido de ler. Quando seu herói perde a família, a cena da morte da família é triste. Já não tá bom? A família já virou um objeto de motivação do protagonista: ninguém se importa com a vida dos familiares mortos, já que a narrativa vai seguir o arco de superação masculina do luto e perda através de matar todo mundo. Quando o autor coloca o estupro como sendo algo que a esposa ou filha do protagonista sofre só para o protagonista ficar mais ofendido e bravo, o drama da mulher é decentralizado e o estupro é só mais uma coisa que fizeram com os objetos do cara. Mataram meu filho, destruíram meu carro, atiraram no meu cachorro, queimaram minha casa, e estupraram minha mulher. Agora sou um cara com uma missão e tal. Já é um artifício barato quando ocorre fora de cena. E aí o autor decide descrever as cenas de estupro porque quer deixar o livro “mais dark”. Quando o autor faz isso, ele só demonstra que tem uma imaginação imbecil que só pensa em comer mulher sem elas quererem. Com todas as motivações que se pode pensar para um vilão, tem tantas outras que me parecem mais interessantes do que ‘vou aqui estuprar essa menor de idade porque sou mau’’ (e o livro é meio pior que isso, né)’. Até porque sabemos que nem todo homem que estupra é um monstro que se esconde nos becos – a maioria deles é alguém próximo à vítima, como padrasto, tio, primo…

A outra tentativa é de colocar o estupro como sendo um momento de crescimento da protagonista. Nossa, olha que horror, ela foi estuprada (ou ameaçada de estupro) numa cena descrita nos mínimos detalhes, e agora ela é uma mulher mais forte por isso. Ela devia inclusive agradecer seu estuprador, já que ela não seria a mulher que é hoje se não tivesse passado por esse trauma. Inferno, hein. Esse segundo caso é o que acontece com Ciri, inclusive, que passa por duzentas tentativas de estupro passando por um parente dela e por um cara com uns mil anos de idade.

E ainda por cima o autor quer descrever as cenas com detalhes como se fosse uma cena sexy hot qualquer, e vamos combinar né. Se você precisa muito colocar um estupro na sua história (o que já me diz MUITO sobre sua forma de tratar mulheres no livro), o fato de você descrever a cena com vocabulário e estrutura de uma cena sensual me diz que você acha que estupro = sexo; e você é um potencial estuprador. Meus parabéns.

Seria menos pior se o autor tivesse um mínimo de compreensão do que são as mulheres. Não é assim que funciona aborto, não é assim que funciona abuso, não é assim que funciona gravidez, não é assim que funciona maternidade, não é assim que funciona relacionamento. Mulheres não reagem assim.

A gente pode sim falar que a estrutura social do patriarcado gera mulheres que ficam saindo por aí estapeando as amantes do digno marido; que ficam competindo pra ser a mais gostosa; que acusam quem aborta de ser assassinas e etc. Mas aí o Sapkowski coloca umas moças ultra-poderosas com 500 anos de idade… e elas continuam assim. Sendo que a maioria das mulheres que tem muitos anos de idade meio que amadurece? Posso fazer uma pesquisa com todas as mulheres do mundo (ou do twitter) – “o que vocês fariam com poder infinito?” – e eu APOSTO que a resposta “ficaria eternamente bonita pra manipular os homens com minha beleza” não seria uma prioridade.

Mais uma vez eu tive a impressão que o autor é um tiozão velho sem graça que imaginou um alter-ego incrivelmente sexy e atraente com quem todas as mulheres lindas querem transar. Não é como se todas as mulheres dos livros dele fossem lindas, poderosas, apaixonadas pelo Geralt e ameaçadas de estupro. Tem algumas que são coadjuvantes e só morrem, porque lembra, fantasia realista. É mais irritante do que triste, na verdade, porque estou para achar livros de fantasia medieval escritos por mulheres, aí não encontro e acabo lendo esses lixos. Se a história fosse boa, eu até conseguiria engolir esse tanto de machismo. Mas nem isso, jovens. Nem isso.

Wiedźmin (1992 a 1999 e 2013), de Andrzej Sapkowski

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