Maio 19, 2024
Home » O Livro da Selva – Os Irmãos de Mowgli | Rudyard Kipling

Esse é um daqueles livros mais famosos do planeta que ninguém leu. Todo mundo conhece a história do menino lobo na Índia que tem amigo pantera negra e urso gente boa e luta com um tigre malvado. Mas como ninguém leu o livro, as pessoas acham que é isso aí mesmo e já era.

Mas como eu sou a chata que acha o livro melhor que o filme desde que eu tenho sete anos, estou aqui para tirar todas as dúvidas. Apesar de ter mais de dez adaptações para o cinema, a mais conhecida é o desenho da Disney de 1967, que acertou a história nos seguintes aspectos: a história é na Índia, Mowgli mora com os lobos e daí aparece vários bichos. Pretendo falar mais sobre essas adaptações no futuro, mas por enquanto é importante ressaltar: o livro é de 1894. Na época não existia literatura infantil, então o autor mandou ver nos animais falantes e nas morais de comportamento e tó, livro pra criança. Hoje em dia, no entanto, é importante avisar aos pais incautos que a história tem momentos sombrios e violentos; os temas falam sobre ganância, exclusão social, amadurecimento e perda. Super dá pra criança ler, mas importante ter aquela supervisão básica.

O autor nasceu na Índia e passou a primeira infância lá. Depois ele voltou adulto já, como jornalista correspondente. Esse livro, segundo ele, foi baseado nas memórias dele quando criança e nas histórias e lendas indianas. Apesar do Kipling ser um colonialista insuportável, essa posição raramente aparece no livro, e tem até momentos que dá pra perceber que ele tem uma admiração relutante pela cultura dos indianos. Como noventa por cento do livro acontece no mundo dos animais e os humanos sequer aparecem, as questões morais são mais relevantes do que as questões sociais, e a leitura é relevante até hoje.

O livro é uma coletânea de contos que foi publicada em dois volumes. Quase metade desses contos tem o menino Mowgli como protagonista e segue a trajetória dele dos zero aos dezoito anos. Os outros contos são em sua maioria sobre animais de diferentes regiões.

O Livro da Selva – Volume I (The Jungle Book)

Os contos que formam esse volume foram publicados em diferentes periódicos e reunidos em coleção pela primeira vez em 1984. Os três primeiros contos são histórias do Mowgli, que foram usadas bem superficialmente para compor a maioria das adaptações cinematográficas.

Os Irmãos de Mowgli

A história começa com Pai Lobo e Mãe Loba na caverna com quatro lobinhos. Eles são visitados melo desagradável chacal Tabaqui, que os informa da fofoca que Shere Khan, o tigre, vai estar usando essa parte da selva pra caçar. Mãe Loba xinga Shere Khan de aleijado (ele é manco de uma perna) e Pai Lobo reclama que o tigre tá invadindo território alheio. Nisso eles ouvem o rugido de um tigre ali perto, e Mãe Loba se espanta: mas o tigre está caçando homem!

Como que ela sabe disso? Porque o rugido do tigre mudou para uma espécie de rosnar baixo que parece vir de todos os pontos cardeais, algo utilizado pelos grandes felinos justamente quando querem confundir os humanos no meio do mato. Os lobos ficam horrorizados, pois pela lei da Jângal é expressamente proibido caçar homens: isso ameaça a vida de todos porque toda vez que um tigre mata homem os outros homens vem pra selva com archotes e destroem tudo.

Ouvindo de longe, os lobos seguem a história: o tigre atacou um acampamento de ciganos e pulou em cima da fogueira, queimando as patas. Pai Lobo sai da caverna para investigar. Ouve um barulho. Se prepara para atacar!

E é um bebê humano, que ainda engatinha. Mãe Loba pede pra ver a criança, já que nunca viu um filhote de homem antes. O bebê se aninha no calor dos lobinhos e começa a mamar na loba. E aí já era, ela quer ficar com ele.

Shere Khan aparece e fala que o filhote é dele. Mãe Loba manda ele sair fora. Nem Shere Khan estava a fim de atacar uma loba defendendo seus filhotes no território dela, e ele sai reclamando que isso não vai ficar assim.

A lei da Jângal diz que todo filhote precisa ser aprovado pelo conselho da alcateia. Seguindo as regras à risca, Pai Lobo e Mãe Loba levam seus quatro lobinhos mais o filhote de homem para a reunião da alcateia, para que os lobos possam aprová-los. Akela, o chefe da alcateia, nem pisca quando um bebê humano é colocado no centro da roda; só continua repetindo que os lobos precisam olhar para os filhotes para decidirem aprovar sua permanência na alcateia.

Shere Khan aparece e fala que ele quer comer o filhote de homem. Akela ignora ele. Alguns lobos mais jovens reclamam que o tigre está certo e que deixar um humano fazer parte da alcateia não faz sentido, e Akela então segue a lei da Jângal: quando a permanência de um filhote é questionada, dois lobos que não sejam seus pais precisam falar por ele.

O primeiro a falar é Baloo. Ele é um urso pardo tranquilão que ensina a lei da Jângal aos filhotes dos lobos, e é a única criatura que os lobos permitem que opine nas reuniões. Ele diz que ele fala pelo garoto e que ele se compromete a ensinar a lei da Jângal pra criança.

Akela pergunta quem mais vai falar. Mãe Loba se prepara para lutar até a morte para salvar seu novo filhote.

Aparece Bagheera, a pantera negra. Ele lembra a todos que a lei da Jângal permite que a vida de um filhote seja comprada por um preço; que ele acabou de matar um touro ali perto; e que ele pode dar esse touro para a alcateia em troca da permanência do filhote de homem. Os lobos jovens se empolgam, falam que tanto faz, a criança vai se afogar no rio ou morrer de insolação mesmo, e correm para comer o touro. Shere Khan vai embora putasso.

O filhote de homem passa a fazer parte da alcateia, e seus pais lobos lhe dão o nome de Mowgli (a rã).

Esse início de história é uma fofura, e com exceção da discussão da alcateia que eu acho linda e não entendo porque a Disney não quis, é seguida à risca em quase todas as adaptações (o que significa que quase todo mundo já conhece). É uma introdução impecável à história, mostrando as nuances de todos os personagens, já estabelece os vilões e os aliados, e coloca o leitor num mundo fantasioso e ao mesmo tempo realista.

Passa dez anos, e Mowgli está correndo por aí sendo criança na selva, quando aos poucos vai percebendo que o cerco de Shere Khan está se fechando contra ele. Akela perde a liderança da alcateia por trapaça dos outros lobos. Shere Khan é idolatrado pelos lobos mais jovens, que odeiam Mowgli por ele ser um homem. Bagheera dá o conselho: se Mowgli for até a aldeia dos homens e conseguir um pouco da flor vermelha, Mowgli poderá usá-la contra Shere Khan e ter alguma chance de escapar dessa.

Mowgli corre até os arredores da aldeia e rouba um pote de brasas de um moleque. Ele volta para a caverna dos pais lobos e passa o dia alimentando sua flor vermelha. Na reunião da alcateia em que um lobo desafiante deve lutar com Akela até a morte pela liderança, Shere Khan aparece e fala que ninguém se importa com um lobo caquético e que é para eles darem Mowgli pra ele. Mowgli se levanta e fala que os lobos não deram permissão pra Shere Khan falar. Shere Khan fala que Mowgli não é lobo, é homem, e que também não faz parte do grupo, e prepare-se pra ser devorado.

Os lobos demonstram que concordam com Shere Khan, tratam Mowgli mal e falam que ele não é lobo, que ele não pertence ao grupo e que ele pode ir embora. Mowgli fica muito chateado e acende um galho imenso nas brasas que ele levou para a reunião. Os animais ficam morrendo de medo. Mowgli dá com o galho queimando na cara do tigre, e fala que já que os lobos estão falando que ele é homem é agora mesmo que ele vai se comportar como um, fala que Akela não deve ser tocado, ameaça todos eles com o fogo, diz que ele são só uns cachorros,  e fala que ele vai embora para a aldeia dos humanos.

Shere Khan e os lobos jovens fogem, e sobra só Mowgli, Akela, uns dez lobos que ainda o apioavam, e Bagheera. Mowgli começa a chorar pela primeira vez na vida e não sabe o que está acontecendo. Depois ele se despede da família de lobos e vai embora para a aldeia dos homens.

Impressionante como um conto com cerca de vinte páginas influenciou tanta coisa e tanta gente. O que será que foi, né? O tema da criança criada por lobos, que cresce na selva longe da civilização, me parece ser atraente para crianças de todas as idades. O momento dos maus tratos que Mowgli sofre dos lobos é bastante cruel, e a luta com o tigre até que assustadora, se a gente pensar que o menino tem dez anos e se ele perder vai ser comido vivo apenas. A narrativa do Kipling sendo super formal sempre me interessou, já que pressupõe uma sociedade respeitosa entre os animais, com noções de hierarquia e do que é apropriado – algo que o autor certamente pegou emprestado da sua formalidade e propriedade da Inglaterra da época, que tentava empurrar à força seus modos de vida nos indianos.

É uma daquelas histórias que não cansa de ler, favorita cem por cento.

The Jungle Book – Mowgli’s Brothers, 1894

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