Maio 19, 2024
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Uma análise inteligentíssima de questões interraciais, de gênero e de imigração, o livro usa o pano de fundo da história de amor que passa pela Nigéria, Estados Unidos e Inglaterra para entregar uma narrativa bem humorada e arrebatadora.

O livro conta a história de Ifemelu e Obinze, desde quando se conhecem no ensino médio, passando pela vida na universidade e depois quando tentam a vida fora da Nigéria.

Apesar de ambos serem de famílias de classe média, os pais de Ifemelu passam por sérias dificuldades quando ela está na faculdade: o pai está desempregado e cada vez mais deprimido (mesmo que o nome da doença ‘depressão’ não seja mencionado na Nigéria), e a mãe completamente absorta em religiões cristãs muito semelhantes aos nossos evangélicos: pastores  que gritam e ficam ricos com as coletas dos fiéis. É aí que aparece uma das personagens mais fascinantes do livro: uma parente do pai de Ifemelu, que vem morar com eles pois a família é de uma cidade pequena e considera que o pai de Ifemelu ‘se deu bem na cidade grande’ e portanto deve dar auxílio a todo resto da família. ‘Aunty Uju’ – eu li em inglês, não sei se na tradução ficou ‘Tia Uju’ – é só alguns anos mais velha que Ifemelu, e já que a mãe desta é tão religiosa, a jovem faz o papel de uma irmã mais velha cheia de conselhos.

Só que aí Aunty se apaixona por um general casado, engravida, e ele morre logo depois que ela tem o bebê. Com a família dele já querendo expulsá-la de casa, ela foge para os Estados Unidos, onde passa anos tentando equilibrar três empregos para poder pagar a educação do filho. É na casa dela que Ifemelu fica quando vai estudar nos Estados Unidos, e é naquele ambiente que a protagonista tem suas primeiras impressões sobre a sociedade estadunidense – olhando para tudo com uma inocência sarcástica que lembra a de um sociólogo entrando em contato com outra cultura pela primeira vez. Ifemelu pergunta porque Aunty Uju fala seu próprio nome errado (you-joo em vez de oo-joo) e Aunty diz, secamente, “é assim que me chamam aqui”. É uma das primeiras pistas que Ifemelu tem de que sua tia de fato criou uma outra persona quando se mudou para os Estados Unidos.

Com as greves constantes que acontecem nas universidades nigerianas, Ifemelu e Obinze tentam sempre conseguir bolsas para estudar fora – juntos, pois consideram que já encontraram seu par perfeito. Ifemelu consegue uma bolsa boa, e vai para os Estados Unidos, onde passa por muitas dificuldades até conseguir um emprego; até que ela é traumatizada por uma situação horrível e se afasta de Obinze, envergonhada e em depressão.

Ele, sem saber do motivo do afastamento, e tendo seu visto americano constantemente negado – os Estados Unidos não querem jovens africanos depois do 11 de Setembro – ele finalmente vai tentar a vida na Inglaterra.

O pano de fundo para o romance de Ifemelu e Obinze é não só a Nigéria em crise política, mas também a situação precária pelas quais os imigrantes passam nos Estados Unidos e na Inglaterra.

No início a narrativa mostra Ifemelu indo fazer as tranças num salão especializado em Princeton e convivendo com as atendentes que são todas africanas, ao mesmo tempo em que alterna para suas memórias do passado, enquanto temos vislumbres da vida sofrida de Obinze na Inglaterra e da sua volta por cima na Nigéria depois de ser deportado.

Ao ter foco no ponto de vista de Ifemelu, o livro cria alguns termos geniais para se referir às questões raciais: os ‘African-Americans’ são americanos negros de antepassados escravizados mas que vivem há gerações nos Estados Unidos. Os ‘American-Africans’ são imigrantes que nasceram em países africanos e estão tentando a vida nos Estados Unidos. Enquanto os primeiros são muito cientes da sua negritude e do racismo presente na sociedade americana, os últimos muitas vezes sequer se enxergavam como negros-que-são-oprimidos-por-brancos antes de pisarem nos Estados Unidos: enquanto nos anos 60 um negro não podia votar nos Estados Unidos, na Nigéria na mesma época todos os negros votavam e iam para a universidade, já que constituíam todas as classes sociais do país africano.

Em interlúdios maravilhosos do blog da protagonista, vemos dicas de como se comportar diante de uma pessoa branca liberal quando você for negro e quiser reclamar de racismo: deve contar a história com um toque de humor e nenhum ressentimento, ou vai ser acusado de estar usando ‘the race card’’. (O blog adiciona que não dá pra se falar de racismo com um branco conservador porque ele vai falar que o racista é você.)

Em um momento menos humorístico, Obinze está em um jantar na Inglaterra cheio de pessoas liberais da classe média inglesa que se interessam por caridade ‘na África’ e se preocupam com ‘o problema da imigração na Europa’, e se espanta como nenhum deles pensou que ‘o problema da imigração’ é uma consequência direta da ocupação do território africano pelos países europeus. E também percebe que está em desvantagem diante do negro inglês que quer vender o uso do seu social security number: enquanto o negro inglês é de classe baixa e passou a vida em subempregos, o negro nigeriano criado em universidade e que nunca levantou peso na vida quer vir ‘roubar’ as oportunidades do negro inglês sem ter nenhum conhecimento das questões comportamentais do sub-mundo das classes mais baixas.

Ao passar por personagens icônicos como a Aunty Uju e seu filho Dike, e o colega de Obinze, Emenike, que se casa com uma inglesa e age como se tivesse nascido na Inglaterra, também demonstram o ponto da narrativa de que os ‘colonizados’ estão sempre condicionados a sentir falta de ter a vida que os ‘colonizadores’ têm: podem não estar passando fome, ou estar em guerra, mas têm a sensação vazia de que a vida em um país subdesenvolvido nunca vai ser boa, porque a única experiência válida é a que se pode ter ‘no Primeiro Mundo’. No fim do livro, um jovem Dike, já adolescente, vai visitar a Nigéria e se encanta com o país e com o fato de que ‘nunca viu tantos negros juntos’, como se representasse um futuro em que os nigerianos – e os ‘colonizados’- não teriam mais vergonha de onde vieram e saberiam apreciar o que sua terra natal tem de bom.

Ao mesmo tempo, a protagonista volta para a Nigéria e resolve criar um blog falando das coisas boas e ruins do seu país, inclusive falando da mania pedante dos recém-chegados de estadias no exterior que estão sempre reclamando que não tem restaurante vegetariano em Lagos como tem em Manhattan.

Sem nunca deixar de lado o jeito irônico de ver a vida, e sempre querendo que o leitor perceba as nuances do contexto histórico nigeriano, a narrativa da autora mescla uma boa história de amor com crítica social e tratado de sociologia.

O que me impressionou mais no livro foi o quão familiar tudo me pareceu: a infância e juventude de Ifemelu na Nigéria, o caos bem humorado de Lagos, a mentalidade de cidade pequena de quem-casou-com-quem mesmo em uma metrópole de milhões de habitantes, a sensação de que os jovens passaram muitos anos achando que os Estados Unidos eram o máximo mas que agora parece que alguns estão começando a mudar de ideia…

O papel da educação na formação do indivíduo fica muito claro ao longo do livro: Obinze é desde cedo obcecado pelos Estados Unidos por sua paixão pelos livros de autores americanos, que a mãe professora universitária não necessariamente o incentiva a ler, porque ela prefere os autores britânicos, mas certamente propõe um ambiente favorável aos estudos e à leitura. Enquanto Aunty Uju vai ser amante de poderoso, não parece passar pela cabeça de ninguém da família de Ifemelu que ela própria não vá para a universidade: é o curso a ser tomado logicamente após o ensino médio, mesmo com o regime militar cortando fundos e com as greves dos professores por falta de pagamento. A excelência acadêmica é almejada e só pode ser alcançada nos países desenvolvidos (tem até um momento em que Obinze acha graça em estudantes saindo da Nigéria para estudar na África do Sul); e as pessoas que vão ou não voltam mais ou voltam ‘Americanahs’, com o acento no ah final, uma palavra que brinca com o jeito afetado que os recém-retornados adotam em relação à Nigéria – reclamando que tudo é feio, pobre e pouco sofisticado.

Durante o livro a autora também faz um retrato interessante sobre o cabelo das mulheres negras: mostrando como em Princeton não se acha salões afro e Ifemelu precisa ir até a periferia para achar quem saiba fazer as tranças; como ela começa a alisar o cabelo para conseguir um emprego, fica muito tempo usando os produtos e é obrigada a parar porque está começando a ficar com feridas no couro-cabeludo, e passa um tempo com o cabelo cortado tentando fazer a transição; até voltar a gostar do seu cabelo natural.

Um ponto interessante é que o tempo todo eles falam em ‘relaxer’ para o cabelo, como se fosse um ‘creme relaxante’, mas é um composto químico tão nocivo que queima sua pele. No Brasil todo mundo fala ‘progressiva’ e destrói seu cabelo do mesmo jeito mas pelo menos não tem o eufemismo de que seu cabelo fica ‘relaxado’ e por isso liso.

Já na Nigéria, Ifemelu percebe que as nigerianas ainda estão muito preocupadas com manter o cabelo liso mas ao mesmo tempo se irrita com as moças que voltam dos Estados Unidos todas politizadas reclamando que as nigerianas estão ‘presas’ no racismo do cabelo liso.

Durante todo o livro eu vi esses pontos importantes com as palavras, já que a autora discute a diferença entre o inglês americano, britânico e nigeriano, e não sei como ficou na tradução, mas um dos pontos de virada na personalidade da protagonista é quando ela decide parar de se esforçar para replicar o sotaque americano. Ela se dá conta, em uma ligação de telemarketing, de que ela soa como uma pessoa branca, e analisa o que ela tem feito para soar dessa forma, e decide voltar a ter sotaque nigeriano. É interessante porque até nisso a educação está presente: no ensino de inglês como língua estrangeira no Brasil, por exemplo, ainda se prefere não só o ‘inglês americano’ ou ‘inglês britânico’ como também se fala em preferir o ‘professor nativo’, como se o profissional ter nascido falando aquele idioma desse qualquer garantia de que pedagogicamente ele saberia o que fazer. Quando eu coloquei um professor nativo justamente da Nigéria para dar aula para uma turma de adultos, claro que vieram reclamar. Por outro lado, é bastante evidente que a utilização do padrão cultural anglófono (EUA – Reino Unido – Canadá – Austrália) como base para as aulas de inglês deixa nos alunos uma sensação bastante predominante de que a cultura ‘deles’ é melhor que a ‘nossa’, mantendo uma posição do Brasil sempre como inferior culturalmente a esses países.

Em muitos momentos do livro, pessoas brancas nos Estados Unidos ou Inglaterra ficam espantados quando ouvem uma opinião embasada e política de uma pessoa negra de outro país, como se um imigrante não pudesse ter um passado universitário. Nos Estados Unidos, no entanto, os grupos ativistas negros são mais bem aceitos nesse papel de contestadores. O que é interessante notar é que tanto Ifemelu quanto Obinze cursam vários anos da universidade na Nigéria, e só depois disso é que saem do país: irônico como uma educação que por eles é considerada ‘menor’ forma dois indivíduos tão originais, independentes e opinativos.

Eu não sei quando que a questão racial entrou no meu radar. Como muitas pessoas do círculo de classe média alta em São Paulo, eu nunca tive amigos próximos negros, sempre fui orientada por uma base cultural dos Estados Unidos e da Inglaterra com pouquíssimas questões raciais: eu era muito criança pra perceber nuances em O Livro da Selva, do Kipling, onde os nativos hindus são adeptos de ‘tradições pagãs e selvagens’ e tentam colocar fogo em um casal que chamam de feiticeiros, e o casal foge para uma cidade onde estão os ingleses, que ‘não toleram esse tipo de coisa’.

Mas fato é que lá pelos meus vinte anos de idade eu comecei a ler os SJW (social-justice warriors – guerreiros da justiça social), nome que os blogueiros que discutiam racismo, gordofobia, homofobia e essas coisas começaram a adotar – e olha só que interessante, hoje se tornou um termo pejorativo que os jovens da internet usam para ridicularizar justamente essas discussões. A princípio eu fui atrás de questões como gordofobia, algo que inclusive é abordado de leve em Americanah: como a palavra ‘thin’ e a palavra ‘fat’ têm conotações completamente diferentes na Nigéria e nos Estados Unidos – no Brasil a palavra ‘gorda’ também tem conotação negativa, e as moças se chamam de ‘cheinha’, ‘gordinha’, ‘fofinha’ ou qualquer outro diminutivo porque ‘gorda’ é considerado ofensa.

O meu blog favorito era This Is Thin Privilege (‘Isso é Privilégio Magro’), com depoimentos de pessoas gordas falando do quanto sofrem com parceiros, colegas, familiares e médicos (especialmente nos Estados Unidos). Daí que eu encontrei o This is White Privilege (‘Isso é Privilégio Branco’): relatos de pessoas do mundo inteiro falando sobre o que é ser uma ‘person of color’, ou seja, pessoa não branca, em um mundo de privilégios brancos. Isso abriu muito minha cabeça e eu entrei em contato com tantas ideias e autoras que eu nem lembro mais quem eu era antes desse blog existir na minha vida.

Uma das  histórias que mais me marcou foi a de uma família das Filipinas (onde as nuances de cor de pele e etnia são algo completamente novo para mim), que se mudou para os Estados Unidos levando uma senhora… Que fora dada como serva para o avô da família quando era adolescente. Ela trabalhou com essa família por mais de 50 anos, foi mudada de país contra a sua vontade, mal falava inglês. Enfim, uma história abismal não só pela situação de uma pessoa escravizada nos Estados Unidos de hoje, em uma casa de família, como também pelo quão comum essa situação ocorre em tantas casas no Brasil de hoje: aquela empregada que ‘é como se fosse da família’ que vive na casa desde que era jovem, criando os filhos da patroa, sem ter vida pessoal, e sem ter salário além da casa e comida.

Ler Americanah foi uma experiência incrível porque era como se eu já soubesse tudo o que ela estava me contando, porque tudo fazia muito sentido, mas ao mesmo tempo é impossível que eu já soubesse porque é a primeira vez que eu li. E mesmo depois de mais de quinhentas páginas (com momentos de pura tensão em que eu olhava quantas páginas faltavam para o fim do livro e me desesperava porque não era possível que tudo fosse acabar bem em tão pouco espaço) eu só queria voltar para o começo e ler tudo de novo. Queria voltar para o início da história da Ifemelu para reler o quanto ela mudou e o quanto ela evoluiu depois do que ela passou. E especialmente, reler para perceber as nuances da narrativa que vai e volta, uma hora no salão de tranças, uma hora no passado do ensino médio idílico do casal.

A convicção que fica é a de que a história do seu próprio país não deve ser esquecida em detrimento da história eurocêntrica, nem a cultura do próprio país ser diminuída diante da cultura dos países ditos colonizadores. A educação é uma das formas mais efetivas de se demonstrar a importância dos aspectos culturais, linguísticos e históricos de cada país para a formação do aluno, e a noção de que vivemos em um mundo globalizado dominado por corporações interessadas na manutenção da situação atual deve ser igualmente trabalhada com os jovens.

A conexão que pode ser feita entre as situações vividas pela protagonista e a situação do Brasil também deve ser reiterada: enquanto nos Estados Unidos e no Brasil temos uma sociedade mais dividida racialmente do que na Nigéria, no Brasil temos a ideia de que o racismo é menos problemático devido ao mito da miscigenação; no entanto, a própria autora, quando visitou o Rio de Janeiro, comentou que por mais que tenha visto muitos negros nas ruas, eles quase não são vistos nos locais frequentados pela classe alta a que ela teve acesso. Enquanto a protagonista percebe que a maioria dos estadunidenses não faz ideia do que seja a África, acreditando que é um único país, onde a selva e a miséria predominam, no Brasil temos uma enorme ignorância a respeito de outros países da América Latina, nossos vizinhos, a tal ponto que o brasileiro médio pode saber quais são as capitais europeias mas não sabe as capitais sul-americanas.

Por outro lado, a visão da autora de que é preciso ‘voltar ao país de origem’ para dar nova oportunidade de crescimento também pode ser aplicada ao Brasil: numa época em que cidadãos descontentes cada vez mais saem do país para tentar a sorte em países ditos desenvolvidos, é importante pensar em voltarmos e ficarmos, pois apenas quando a elite intelectual e cultural do país estiver organizada para fazer com que o país melhore é que ele de fato pode ter uma chance de melhorar.

É muito raro eu gostar tanto de um livro, ainda mais um que não é o gênero que eu acabo escolhendo. Fiquei muito agradecida de ter ser sido de certa forma ‘obrigada’ a ler esse. Recomendo fortemente!

Americanah, A Novel (2013) de Chimamanda Ngozi Adichie

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