Setembro 20, 2024
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Imagine uma sociedade onde o lema é “não seja pego”. Onde você pode cometer o crime que quiser desde que ninguém tenha provas de que você o cometeu. Onde o poder é o desejo de todos. Se  você for incapaz de se livrar das evidências do seu crime, você vai ser sumariamente executado, e sua alma obrigada a servir a deusa aranha rainha maligna.

Imagine famílias onde os irmãos e irmãs se assassinam entre si para ficar com a melhor posição hierárquica. Onde as crianças são ensinadas com o “auxílio” de chicotes de pontas envenenadas. Onde a vida gira em torno de planos para assassinatos, traições e guerras.

Imagine uma sociedade onde as mulheres governam com punho de ferro. Uma sociedade matriarcal maléfica em que as mulheres são maiores, mais fortes e mais inteligentes do que os homens, os quais são sempre vistos como inferiores, meros reprodutores descartáveis.

As matronas são também líderes da igreja de uma deusa implacável, que transforma seus seguidores desobedientes em monstros. Apenas mulheres podem ser sacerdotisas na igreja, os homens tem o trabalho menos honrado de lutar e morrer nas incontáveis batalhas da região. As famílias nobres são geneticamente superiores às pessoas comuns, escravizam outras raças e estão em eterna guerra e conspiração expansionista.

Essa é a sociedade onde nasceu Drizzt Do’Urden, um garoto de família nobre que é criado para ser um super soldado.

Voltando à vida real, agora. Era uma vez um jogo de rpg de fantasia, que tinha um cenário de aventuras bastante popular. Um dia publicaram uma série de livros com personagens icônicos que se passava nesse cenário de aventuras. Icewind Dale Trilogy fez sucesso entre aquele nicho de consumidores. Os personagens eram o que era de se esperar: o anão guerreiro, o humano de uma tribo de bárbaros do norte, o halfling falastrão e gatuno, a moça que está lá pra ser a moça do grupo. Normal. E aí teve um personagem que não era tão normal: Drizzt Do’Urden.

Dentro desse cenário de aventura fantasiosa que era inspirado por O Senhor dos Anéis, tinha lógico os de sempre: elfos e anões e halflings do Tolkien, os humanos passeando, lutas de espada, minas perdidas, todo o resto. Mas também inventaram uma raça nova: os drow, os elfos negros, que vivem nas profundezas do mundo, são todos malvados e corruptos, e claro que vivem numa sociedade matriarcal, e por acaso são todos de pele escura.

Historicamente os drow tinham aparecido na primeira edição de Dungeons & Dragons, de 1977, na parte sobre elfos do Livro dos Monstros, mas eram só mencionados assim por cima. Quando foram colocados como uma força maléfica inteligente e poderosa nas aventuras Against the Giants, e depois melhor desenvolvidos nas sequências Descent into the Depths of the Earth e Queen of the Demonweb Pits, foram adotados pelos jogadores como os melhores vilões e oponentes do jogo.

Há diversas histórias por aí sobre o assombro, medo, ansiedade e empolgação que os jogadores sentiram jogando contra os drow, e isso se transformou em paixão: todos os jogadores queriam agora que seus personagens fossem drows. Mesmo com todo o pano de fundo criado pelos desenvolvedores dos jogos, falando que os drow eram todos maus. Afinal, quem não quer ser o anti-herói? (No caso, jogadores de rpg gostam de ser os vilões mesmo, matando todo mundo e roubando os dinheiros, mas isso é uma conversa diferente.)

Voltando ao Drizzt, ele se tornou um personagem popular não só por ser o mais interessante e diferente nos livros da Icewind Dale Trilogy, mas também justamente por ser um drow, que era bonzinho!  E maneiro de mais, gente. Lutava com duas espadas, era especialista em rastrear inimigos, até atirava com arco e flecha. E além de tudo tinha uma pantera negra mágica!

Por ser o mais popular, e tendo gerado diversas perguntas sobre sua moralidade, Drizzt virou protagonista da sua própria série de livros. O primeiro deles, do mesmo autor da Icewind Dale Trilogy, foi esse Homeland, que descreve o início da vida de Drizzt na sua cidade natal, Mezoberranzan, a capital dos drow no meio do Underdark.

Drizzt Do’Urden por Tyler Jacobson, arte oficial da carta para MtG, 2021. Em maio de 2021, o original foi vendido por 155 mil dólares.

A família de Drizzt é a sexta maior da cidade, já que no dia em que ele nasceu os Do’Urden eliminaram completamente uma outra família de drow. Mas ele não é um drow comum. Ele nasceu com os olhos da cor errada. Ele não é naturalmente deferente e obsequioso com a sua mãe e suas as irmãs. Interessado nas habilidades do garoto, Zaknafein, o chefe das armas dos Do’Urden, consegue convencer a matrona Malice, mãe de Drizzt, a deixar que o garoto seja treinado como guerreiro, e não como mago.

Esse livro segue então os primeiros anos de vida de Drizzt, treinando com Zaknafein, treinando na Academia de Armas dos Drow, sendo educado por sua irmã mais velha e aos poucos descobrindo a perversidade da cidade onde nasceu, que não é natural para ele como para os outros drow. Até que ele percebe que sua própria personalidade é mais do que um pouco diferente: ela é diametralmente oposta ao padrão da sua raça.

No ambiente sombrio de Mezoberranzan, onde não existe luz natural, me diverti imensamente com as tramas políticas da matrona Malice; fiquei na dúvida sobre torcer pelos Do’Urden ou pelos outros drow; adorei as lutas de espadas e os momentos mais maneiros do Drizzt. Ele é um cara gente boa, e seu drama existencial é interessante. Mas sua moralidade perfeita é irritante.

A pantera que chama Gwehenhewdjjsd sei lá é a MELHOR parte do livro, de qualquer livro. Uma pantera negra dos planos elementais que vira miniatura quando Drizzt não precisa dela, ela tem a personalidade misturada entre o meu gato e o Toothless e é perfeita em todas as cenas que ela aparece.

E agora vamos falar de racismo? Vamos.

Hoje estou revisando essa resenha quase em 2023, treze anos depois da original. Eu sabia que racismo existia lá nos meus 25 anos. Mas gente branca, sabe como é.  Então, explicando porém não justificando, claro, o racismo passou totalmente batido.

Fui viver mais um pouco e tentar virar pessoa menos pior, e logo percebi o racismo escancarado [pra não falar no machismo lindinho] de uma raça totalmente malvada e totalmente negra. A arte dos personagens foi refletindo essa mudança bem claramente. Quando os drow eram só os vilões, a pele deles era retinta, e muitos até tinham rostos com traços mais africanos. Conforme os drow foram ganhando a fama e o carinho dos jogadores, eles ficaram cada vez menos pretos, com pele desde azul escuro até roxo claro, os cabelos cada vez mais lisos e os rostos com traços cada vez mais caucasianos. O próprio Drizzt de preto só tem a cor da pele.

Quando os drow foram fazer participação em outra editora, os caras só meteram um roxo lá e inventaram uma história que eles acharam que era melhor. Em Forgotten Realms os drow eram elfos brancos e quando aceitaram a deusa maléfica e resolveram ser malvados, eles foram para as cavernas e adquiriram pele negra ao longo dos anos. Como se quando privados de luz solar as pessoas ficassem pretas e não branca transparente, mas essa parte deixa. Já a nova editora fez assim: não é que os antepassados dos drow eram elfos que renegaram suas origens. Os indivíduos elfos que são malvados se transformam em drows quando seu nível de maldade chega no ápice! Pronto, agora não é mais racismo. [estou revirando os olhos demonstrando ironia por favor]

Como hoje em dia as pessoas parecem estar um tiquinho mais informadas e interessadas em serem melhores, a situação dos rpg de fantasia vem melhorando. Alguns já mudaram a palavra “raça” pela palavra “ancestralidade”; tem editoras muito boas que estão criando personagens e ambientações sem ser tudo branco-europeu; tem gente questionando anões serem raça, falando sobre pessoas com nanismo e passando pela origem anti-semita do estereótipo de Tolkien.

Mas o máximo que deu pra fazer com os drow foi chamar eles de elfos das profundezas (deep elves) em vez de elfos negros, fazer arte com pele branca/roxa, retirar alinhamento maligno obrigatório. Eles são icônicos demais.

A discussão fica aberta porque não sou daquelas que fala que não é pra você consumir arte de gente racista. A não ser que você queira, claro. Faz o que você achar melhor. Se eu te convencer a não comprar os livros pra não dar dinheiro pra editora, ela vai continuar sendo rica e poderosa e uma das maiores no mercado de jogos hoje, independentemente da nossa contribuição.

Mas quanto mais a gente reclama de racismo e pede representatividade, mas eles são obrigados a ceder. As editoras menores concorrentes estão ouvindo a gente, e já tem cenário de fantasia medieval com trisal lésbico de moças não brancas no panteão de Golarion, por exemplo.

No fim das contas mesmo que você não queira parar de consumir, é muito importante estar ciente das questões de racismo, machismo e homofobia dentro desses produtos. Identificar o problema já é um começo para avançarmos.

No meu caso, achei o livro muito divertido, sempre adorei jogar de drow, acho a sociedade matriarcal maléfica apenas uma versão melhorada do feminismo legalizado™, sou fascinada por cavernas, Lolth é a melhor deusa aranha maligna de todas; então,  apesar de tudo, esse livro sempre vai ter um lugarzinho no meu coração.

Homeland (1990) de R. A. Salvatore. The Dark Elf Trilogy Book 1

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