No livro Cozinheiros Demais, há um momento em que Nero Wolfe, o grande gênio detetive, está quase desistindo de um caso por falta de provas. Ele sabe que um dos garçons do hotel chiquetoso em que eles estão viu o assassino – mesmo sem saber – e precisa descobrir a hora em que isso aconteceu. Para isso, ele reúne todos os garçons na suíte dele, oferece bebidas e faz um discurso.
O primeiro detalhe a ser comentado é que todos os garçons são negros. O segundo – e importante – detalhe é que isso era 1938 em West Virginia, o que significava que os negros eram considerados um pouco menos do que cidadãos de segunda classe.
Wolfe faz um discurso sobre raça, nacionalidade, preconceito e justiça que faz com que um dos garçons, um universitário chamado Paul Whipple, se impressione o suficiente para resolver contar a verdade. Por causa dele, Wolfe consegue libertar um homem inocente, revelar o assassino e de quebra conseguir uma receita incrível que ele queria há anos.
Anos depois, um homem negro de meia idade chega na casa de Wolfe pedindo audiência, senta-se e começa a recitar o mesmo discurso dito por Wolfe tantos anos antes. É Paul Whipple, agora casado e com um filho, pedindo um favor em troca daquele que ele havia prestado no hotel chique quando era garçom pra pagar a faculdade.
Wolfe, que jamais recusa favores a quem ele acredita estar devendo, aceita a proposta mesmo que relutantemente. Primeiro porque ele não gosta de trabalhar, e segundo porque Paul Whipple quer que Wolfe descubra alguma sujeira sobre a noiva do filho, para ver se o moleque desiste dela. O motivo: ela é branca. Só lembrando, tá. Isso é nos Estados Unidos, na década de 60, quando o movimento pelos direitos dos negros, o Civil Rights Movement, estava cada vez mais relevante. 1964 (o ano em que o livro foi publicado) foi o ano em que o Civil Rights Act entrou em vigor, transformando a discriminação racial (entre outras) em crime, além de proibir a segregação em escolas e outros locais públicos. Só lembrando, de novo: até então, negros não podiam frequentar os mesmos locais que brancos; tinham de ir em escolas diferentes, sentar em bancos na parte de trás nos ônibus, beber em bebedouros separados.
Paul Whipple, que não é trouxa, acha que Susan Brooke, a mocinha que quer casar com seu filho é meio doida: casar-se com um negro, naquela época, era o equivalente a ostracismo social de ambos os lados. Ela é de família rica, não trabalha, e passa os dias como voluntária em período integral para uma associação pelos direitos dos negros. Foi lá que conheceu Dunbar, o filho de Whipple.
O ajudande de Wolfe, o charmoso e bonitão Archie Goodwin, vai atrás de fatos que eles possam usar para convencer Dunbar a desistir da mocinha, mas não acha nada de interessante. Ele então vai até o interior do país (porque Wolfe jamais sai de casa), pra tentar achar alguma coisa na cidade natal de Susan. Mas recebe um telefonema de Wolfe, dizendo que era pra ele voltar: Susan havia sido encontrada morta em seu apartamento no Harlem (bairro ‘negro’ em Nova York).
Paul Whipple implora que Wolfe ajude-o a inocentar o filho, mas Wolfe recusa. Novamente, ele detesta trabalhar. E ele diz que não existe motivo para Dunbar querer matar Susan e que a polícia não vai prender um homem sem provas. Paul vai embora, indignado.
Logo depois, Wolfe ouve do inspetor de polícia que Dunbar Whipple está preso, acusado de ter assassinado a moça. Nero Wolfe é obrigado não só a admitir que estava completamente errado sobre o racismo da sociedade onde vive, mas também, por orgulho próprio, ajudar Dunbar a se livrar da acusação, já que está convicto da inocência do jovem.
Para isso Archie precisa lidar com a polícia, que já está com o caso fechado – um negro andando com uma branca, claro que foi ele quem matou; com a família de Susan, que estão convencidos que ela estava “passando por uma fase favelada” (entre outras coisas simpáticas – essa parte dói ler) e que querem que o caso seja abafado por ser impossível que a moça estivesse envolvida “com um deles”; e finalmente com o jovem idiota (branco) que achava que Susan ia se casar com ele.
Fica claro que Rex Stout era um autor com as ideias certas na cabeça, e independentemente da trama policial (que é muito boa), esse livro é interessante por ser contemporâneo aos eventos que mencionei e ao mesmo tempo mostrar um ponto de vista sensato e sem preconceitos. Por outro lado, é bem complicado ler as manchetes de hoje em dia (especialmente as dos Estados Unidos, mas infelizmente não só) e ver que tão pouca coisa mudou nesses cinquenta anos.
Eu sempre recomendo os livros do Nero Wolfe, mas esse é especialmente importante.
A Right to Die (1964) de Rex Stout. Série Nero Wolfe
Sou fã de livros e filmes com detetives. Esse acaba de entrar para minha lista! Obrigada!
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