Acho que todos já ouviram falar de Mogli, o menino lobo. Foram várias adaptações cinematográficas (especialmente a da Disney) as responsáveis pelo personagem ganhar a posteridade. Mas inicialmente tivemos O Livro da Selva, às vezes publicado em dois volumes e às vezes em um só, que é um dos maiores clássicos da literatura mundial.
Àqueles que pensam que é só um livro infantil sem maiores atrativos, é necessário que eu gaste meu francês. Esse livro foi escrito para as crianças sim, mas não tem nada de bobo ou engraçadinho: as histórias são maduras, tensas e amedrontadoras.
O Livro da Selva, além disso, é mais do que somente a história de Mogli – que, em si, fala do ato de crescer, do amadurecimento e dos ritos de passagem para a vida adulta – mas é também uma série de contos com diversos protagonistas e poesias que são uma declaração de amor aos animais, à natureza e à própria Índia.
É impressionante como uma história escrita há tanto tempo (foi publicado em 1893, e baseado em fatos de 1850/60) consegue manter os leitores de hoje completamente interessados no que vai acontecer. Vou falar de cada conto do primeiro volume do livro, porque cada um é único e tem o clima diferente.
Contos de Mowgli
Os Irmãos de Mowgli
Essa é a história que todo mundo conhece: Mowgli é um bebê achado por um casal de lobos e criado como um deles na matilha no coração da Índia.
Somos apresentados a Baloo, o urso que ensina a Lei da Selva aos lobinhos. Conhecemos Bagueera, a pantera negra, e Akela, o líder da matilha. E não podemos esquecer da minha personagem favorita, Mãe Loba, conhecida na juventude como Raksha, a demônia.
O conto narra como Mowgli chega e como ele vai embora, dez anos depois, quando o tigre que sonha em jantá-lo passa a ter influência demais na matilha a que ele pertence.
Bagueera aconselha Mowgli a usar fogo contra o tigre e contra os lobos que o apóiam, e Mowgli ganha a batalha e foge para a “matilha dos homens”.
O conto é delicioso, pois cada personagem, apesar de ser um animal, tem personalidade única e cativante – com excessão talvez de três dos irmãos de Mowgli, que não são discerníveis – e a trama é muito interessante. Além da originalidade da história, temos o garoto inocente e despreocupado de um lado e o tigre – mais forte, mais ágil e maior – tramando para comê-lo.
A narrativa, impecável, faz com que o leitor não consiga largar do livro antes de terminar a história.
Eu só tenho a dizer que entendo por que, por mais que me impressione com o fato, esse conto que tem menos de trinta páginas influenciou tanta gente e fez tanto sucesso.
As Caçadas de Kaa
O conto começa com Mowgli, antes de sair da selva e ir para a vida na cidade, com apenas sete anos de idade e aprendendo sobre a lei da selva com o amável urso Baloo. Entediado até os ossos, Mowgli some de vez em quanto para se aventurar pela selva, e numa dessas escapadas encontra com os Bandar-Log, os macacos das árvores.
Os Bandar-Log são ignorados por todos os povos da selva e fazem o possível para chamar a atenção deles, muitas vezes jogando nozes e frutas secas em suas cabeças. Até que fazem o impensável e resolvem raptar o precioso filhote de homem.
Quando isso acontece, Baloo e Bagheera ficam sem saber o que fazer, já que não têm idéia de onde os macacos pode ter-se metido. Resta a eles apelar para o maior inimigo dos macacos: a dissimulada serpente Kaa, uma píton que bota medo nos macacos pela sua habilidade de fingir ser um galho seco até que o próximo deles seja imprudente o suficiente para cair no seu abraço.
Os protetores de Mowgli fazem o pedido com cortesia e muitas ofertas de presentes. Kaa aceita ajudá-los, mas afirma que também não sabe onde os macacos ficam. É aí que a providencial educação de Mowgli entra em cena, pois ele é capaz de avisar Chil, o abutre, na língua dos pássaros, sobre a direção que os macacos parecem estar tomando.
O conto é excelente. Kaa é uma personagem enigmática. No fim das contas ela fica amiga de Mowgli, e não existe possibilidade dela se virar contra ele; mas não é por isso que ela será amiga dos amigos dele. O autor, dessa forma, soube muito bem descrever o que seria uma criatura de sangue frio. A batalha nas Tocas Frias, a cidade em ruínas onde os macacos escondem Mowgli, é um show à parte, com os novos amigos que Mowgli faz, Bagheera fazendo o inusitado, e a maquiavélica dança final de Kaa.
Tigre! Tigre!
Sim, Mowgli voltou à “alcatéia dos homens”, depois de ter derrotado Shere Khan ao humilhá-lo com um galho pegando fogo. E nesse conto o autor nos mostra o que aconteceu depois: como Mowgli foi “aceito” na aldeia, como ele foi acolhido por uma família e como ele arranjou a profissão de cuidador de gado.
Ele não se esqueceu de forma alguma da intenção de Shere Khan de matá-lo, e precisa da ajuda do seu irmão Lobo Gris e do antigo líder da matilha, Akela, para acertar as contas com o tigre.
Essa parte da história já tem outro tom. O autor, com a descrição da hierarquia de uma aldeia indiana, já começa a fazer com mais incisão suas críticas à sociedade da época. Enquanto isso, a coisa fica mais séria, já que, enquanto no primeiro conto Mowgli estava escapando da morte usando um estratagema quase infantil de tão simples, aqui ele já está com convicções mais adultas e intençoões mais pesadas.
O tom de humor também tem seu lugar, já que Buldeo, o caçador da aldeia, tem uma visão cômica dos elementos da selva; e Messua, a mulher que aceita Mowgli como filho, é responsável pelo tocante apelo emocional.
Outros Contos do Livro
Entre os contos que falam da vida de Mowgli, o autor colocou outros, que em geral também têm a ver com a Índia, e que de maneira alguma deixam a peteca cair. Entre eles estão comédias levinhas, dramas complexos e narrativas de tradicionais lendas e contos da Índia e de outros lugares.
A Foca Branca
Kotick sempre pensou que seria importante um dia, já que nasceu branco. Mas até sua juventude ele nunca tinha sentido tanta revolta. Os homens chegaram até sua ilha e mataram e tiraram a pele de todas as focas. Revoltado, Kotick perguntou às focas mais velhas porque eles não se mudavam de ilha, mas a resposta foi que sempre havia sido assim e sempre seria: um dia o
homem vem e mata todo mundo.
O conto narra a história da busca desesperada de Kotick por uma ilha onde o homem não tenha chegado e nem possa chegar. Comovente e simples, a narrativa consegue fazer o leitor se identificar com o personagem da foca e faz um trabalho excelente de conscientização do abuso do homem.
Rikki-Tikki-Tavi
Um conto muito fofo que fala de Rikki-Tikki-Tavi. Ela (sempre vai ser ela pra mim) é uma mangusta que vai parar num bangalô inglês. Estando lá, toma para ela a missão de proteger o casal e o moleque que vivem ali.
Ela então começa sua cruzada épica para cuidar do jardim. Sua primeira missão: impedir que as perigosas cobras najas que vivem no buraco do muro consigam executar seu plano maligno. Para isso, ela conta com a ajuda de colegas inestimáveis. O tagarela pássaro alfaiate Darzee e sua companheira dão avisos importantes. Além disso há o rato mosqueado Chuchundra, que vive criando coragem para andar pelo meio dos corredores mas nunca tem.
Esse sim é um conto bastante infantil, onde nada é muito complexo e a aventura lembra coisas fofas do tipo Redwall e O Ratinho Detetive. As mangustas são realmente fofas, mas tenta ver uma delas brincando de comer cobras vivas pra você ver a graça que é.
Como dizem no Cracked.com, as mangustas caçam cobras. Why? Because fuck snakes, that’s why. Elas não comem cobras. As cobras não as atacam. Elas simplesmente têm essa guerra infindável contra as cobras como missão de vida. Kipling fez um trabalho encantador ao contar a história de uma dessas mangustas.
Toomai dos Elefantes
O velho Toomai dos Elefantes foi o homem que capturou Kala Nag, excelente elefante que serviu o marajá por sessenta anos. Toomai Pai guia Kala Nag pelas planícies para ajudar a capturar elefantes selvagens. E o jovem Toomai, de menos de dez anos, vive correndo pelo acampamento e se balançando na tromba de Kala Nag. Isso causa o desespero do pai, que não que ele se meta com os selvagens caçadores de elefantes.
Uma noite, quando estão tentando domar um dos elefantes capturados, o jovem Toomai entra no cercado e joga uma corda que havia se soltado para um dos domadores. Kala Nag, alarmado, não hesita em pegar o garoto com a tromba e colocá-lo fora do perigo.
O Sahib responsável pelo acampamento vê o garoto sendo salvo pelo elefante e, divertido, vai conversar com o menino. Toomai, tímido porém decidido, diz que quando crescer quer ser um caçador, como eles. Todos em volta riem, e o Sahib diz que Toomai poderá ser um caçador quando tiver visto os elefantes dançarem. Isso causa mais gargalhadas, pois ninguém jamais viu A Dança dos Elefantes. De vez em quando, caçadores encontram enormes clareiras, criadas por centenas de elefantes selvagens pisoteando o chão.
Mas o pequeno Toomai e o sábio Kala Nag terão uma surpresa para todos.
Eu adoro elefantes, sempre gostei, e é tudo culpa de Kala Nag. Ele é o conto todo e um personagem cheio de inteligência, sensibilidade e esperteza.
Toomai, o garoto, é quase um coadjuvante. O conto é excelente, com uma história simples e ao mesmo tempo tão cativante.
Os Servos de Sua Majestade
O Vice-Rei da Índia recebe a visita do rei selvagem do Afeganistão. Para essa célebre ocasião, organizaram uma parada de milhares de soldados para mostrar o poderio do governante.
Mas para uma parada dessa magnitude, precisaram reunir uma série de animais: os elefantes, mulas, cavalos, bois, camelos… enfim, animais de carga de diversos tipos.
Todas as noites havia algum estampido e os animais saíam disparados pelo acampamento, destruindo barracas e colocando tudo numa grande confusão.
O conto narra uma dessas noites, em que vários animais perdidos por causa da confusão se reúnem. Por acaso, eles estão perto da barraca do narrador, um soldado inglês que entende a língua dos animais. Dois bois, um camelo, duas mulas, um cavalo, um elefante e uma cadelinha discutem seus papéis num exército. Eles seguem falando sobre seus medos e suas habilidades, até que os bois decidem se retirar e a festa acaba.
Um conto dos mais divertidos, também é interessante por mostrar para que eram usados tantos animais num exército enorme como o anglo-indiano no século XIX.
The Jungle Book (1894) de Rudyard Kipling (Reino Unido)