O Livro
Ella Enfeitiçada – Gail Carson Levine (1997)
A história da garota que é obrigada a obedecer poderia ser apenas mais uma versão da Cinderela se não fosse pela habilidade da autora em construir personagens e uma trama extremamente cativantes. Ella, a garota que recebeu o “dom” da obediência de uma fada louca, sofre poucas e boas nas mãos de suas irmãs postiças mesquinhas, mas nunca perde o tom desafiador com que enfrenta suas adversidades. O príncipe Char, por quem ela se apaixona, nada tem de bobo príncipe encantado que só serve para salvar garotas em perigo: ele tem personalidade e o romance dos dois é bastante plausível.
Todos os personagens, da louca fada Lucinda ao ambicioso pai de Ella, são de uma dimensionalidade incrível para um livro tão curto e aparentemente tão simples. Mas ele é um dos livros infanto-juvenis que acreditam na inteligência do leitor, e isso faz toda a diferença.
O Filme
Uma Garota Encantada (2004)
de Tommy O’Haver, com Anne Hathaway, Cary Elwes, Minnie Driver, Vivica A. Fox.
Ella é uma garota que é obrigada a sempre obedecer, por causa do dom recebido de sua fada madrinha. Quando seu pai se casa novamente, após a morte de sua mãe, Ella miseravelmente percebe que suas irmãs postiças descobriram a verdade do seu “dom” e não hesitarão em fazer da sua vida um inferno.
Ella foge para procurar Lucinda e no caminho se depara com ogros, gigantes e elfos que são oprimidos pelo maligno rei. O príncipe Char, herdeiro do trono, tromba com ela um dia e fica imediatamente encantado com o total desdém que ela tem por ele – oposto aos fã-clubes formados pelas outras garotas.
Antes que tudo se resolva, porém, Ella se envolve numa trama para assassinar o príncipe, por quem no fim se apaixona, e ela terá de fazer de tudo para impedir a si mesma de obedecer a ordem.
O filme tem uma pegada de fantasia modernosa cheia de comédia que em momento algum se leva a sério, e isso ajuda um pouco. O roteiro bobinho, as cenas de ação sem graça e os efeitos especiais pavorosos transformam a produção em tipo D, mas o sorriso de Anne Hathaway impede que o espectador odeie com tanta força a produção.
Filme x Livro
Anne Hathaway, em minha opinião, é uma excelente Ella, com sua atitude corajosa e seu sorriso cativante.
Mas se for pensar além disso, aí as coisas ficam mais complicadas.
Para criar algum tipo de conflito romântico com o príncipe, o roteiro inventa uma sociedade medieval opressora, que obriga elfos a serem sempre cantores e dançarinos, transforma os gigantes em escravos e mantém os ogros oprimidos. Obviamente a politizada Ella luta como pode contra essa opressão, e não gosta do príncipe porque acha que ele ignora as necessidades do seu povo.
O filme não explica como é possível que meia dúzia de humanos magrelos consiga dominar uma centena de gigantes daquele tamanho, e isso deixa a ambientação tão implausível que o filme perde muito da sua graça.
Os elfos se vestem com roupas verdes de Peter Pan em peça escolar. Os ogros tem as calças que caem e as testas azuis (?). E os gigantes são pessoas normais aumentadas por CG que dançam street dance.
Além disso, as jovens têm um fã-clube – com direito a faixas e tudo – do príncipe Char, as lojas do mercado ficam em casas de três andares com escadas rolantes de madeira e todas as fadas, com exceção da amiga de Ella, são bêbadas incorrigíveis.
Cary Elwes está se divertindo como nunca no papel do tio maléfico. Poucos no filme parecem constrangidos (a não ser, talvez, Minnie Driver). Anne Hathaway e seu namoradinho príncipe estão sempre sérios no papel e se esforçando bastante, mas aí vem a cena em que ela é obrigada a cantar, que, por mais que a atriz dê conta da situação, fica muito estranha dentro da narrativa.
Apesar do final do filme ser muito mais dramático do que o final do livro, com o assassinato e tal, não fez o menor sentido ela precisar de um espelho e tudo ficaria resolvido: ela só foi burra a vida toda por não ter pensado nisso? Que coisa mais idiota.
O livro é infinitamente mais inteligente, mas empolgante e mais legal.
Li o livro por causa do filme, mas antes de vê-lo. E concordo com tudo o que vc disse. O livro é bem mais inteligente e o filme diverte, mas a produção é precária demais, podia ser melhor. Adorei ver Anne Hathaway cantando e o príncipe Char ter um fã-clube, mas esse vilão cartunesco não dava pra aguentar.