Já falei sobre um dos contos do primeiro Livro da Selva, e como ele é o livro que inspirou todos os filmes e desenhos de Mogli, o menino lobo.
O Livro da Selva foi originalmente publicado em dois volumes, o primeiro contendo histórias que hoje são mais conhecidas e o segundo com histórias que eu considero tão boas quanto as outras, mas que são talvez mais adultas.
Histórias de Mowgli
Como Apareceu O Medo
Essa história se passa antes do primeiro conto, quando Mowgli ainda vivia com os animais na selva. É tempo de seca e todos os animais se reúnem no Poço da Paz, um dos poucos locais que acumulam água e onde a caça é proibida e todos, carnívoros ou herbívoros, vão até ali sem medo para beber.
Shere Khan perturba a paz reinante e Hathi, o elefante, o animal mais sábio da floresta, resolve contar a história de como, por culpa de um tigre, o medo surgiu entre os animais.
Eu pessoalmente acho esse um dos contos mais sem graça do livro, apesar de reconhecer seu valor como lenda indiana coletada pelo autor.
Os personagens nada fazem na história a não ser ouviu o conto de Hathi, e sinceramente isso não é das coisas mais empolgantes.
O Avanço da Selva
Ó a polêmica e o spoiler ae. Depois que Mowgli é expulso da aldeia dos homens – fato descrito no conto Tigre! Tigre! – ele resolve deixar as coisas como estão e voltar para a selva, onde ele agora acredita que pertence pelo resto da vida. Mas aí ele e seus amigos lobos ouvem o caçador Buldeo conversando numa trilha com alguns carvoeiros, e Mowgli descobre que a aldeia vai queimar o casal que o acolheu como feiticeiros por terem abrigado o menino-demônio.
Enfurecido, Mowgli vai até a aldeia e conversa com Messua, a mulher que o acolheu, e a encontra machucada e amarrada dentro de uma casa. O marido dela explica – mas Mowgli não entende bem – que o motivo real pelo qual estão sendo acusados é que ele é um dos homens mais ricos da aldeia, e se ele for queimado como feiticeiro todos os seus bens serão redistribuídos.
O cheiro do sangue de Messua faz com que Mowgli tome a decisão definitiva. Ele planeja resgatar ela e o marido, arranjar uma “escolta” até a cidade mais próxima onde os ingleses têm base – os ingleses não aceitam essa bobagem de queimar vivos os acusados de feitçaria – e destruir toda a cidade.
Para isso ele pede a ajuda de Hathi, o elefante, que já participou de uma destruição semelhante, quando foi pego por uma armadilha e resolveu se vingar dos homens que a tinham armado.
O conto aí já tem um climão, né gente. Não estamos falando de um simples duelo entre dois seres que são inimigos. Estamos falando da destruição de casas e fazendas de dezenas de pessoas para a vingança pessoal de um garoto.
Pesado.
E o pior – ou melhor – é que é tudo baseado em história real: existem relatos na Índia de elefantes enfurecidos com um indivíduo, por terem sido atacados durante caçadas, que voltaram para a cidade do tal e destruíram tudo. Tudo! Sabe Godzilla em Tókio? Pois é.
Muito da hora, vai.
Destaque para a cena de Bagheera bocejando.
O Ankus do Rei
Muito favorito!
A história pode ser dividida em duas partes, a primeira com Mowgli e Kaa e a segunda com Mowgli e Bagheera.
Primeira parte: o que eu chamo de A Cobra Branca.
Mowgli e Kaa estão brincando de se espancar – é normal, gente, amizade – e Mowgli, depois de perder da cobra, reclama que está entediado. Kaa se lembra de uma colega muito estranha que encontrou nos subterrâneos das Tocas Frias e decide levar o colega até lá.
Sem muito spoiler, o fato é que Kaa sai dali mais do que certa que sua colega descolorida é completamente louca e Mowgli sai segurando uma peça que ele gostou muito: um cetro com um gancho na ponta, decorado com coisas brilhantes e desenhos de elefantes, que atraem Mowgli imensamente porque o lembram de seu amigo Hathi.
A segunda parte, que eu chamo de A Caçada, é quando Mowgli, ao conversar com Bagheera (que já viveu entre os homens), descobre pra que serve o tal cetro: é um ankus, usado por rajás para enfiar na cabeça dos elefantes que cavalgam para fazê-los andar mais rápido – o equivalente a esporas. Mowgli fica horrorizado que aquilo tenha sido usado para machucar animais e o joga longe, mas Bagheera o alerta de que se cair em mãos erradas – ou seja, nas mãos de homens – vai dar problema. Mowgli, que não entende porque os rubis e esmeraldas, dos quais ele nem sabe o nome, encrustados no ankus são interessantes, ignora o aviso e vai dormir.
No dia seguinte, o ankus não está mais onde ele o havia jogado, e pelas pegadas o objeto foi pego por um homem. Curiosos, Mowgli e Bagheera passam a seguir os rastros.
Aqui a crítica social fica mais do que clara. E, além dela, tem a história da Cobra Branca, ou Thuu, como Mowgli a apelida, que é de uma graça só dela: os tesouros perdidos dos antigos rajás da Índia são para qualquer criança dar asas à imaginação.
Os Cães Vermelhos
Outro dos meus favoritos no mundo inteiro!
Eu sei, parece que todos são meus favoritos, mas esse é, sem dúvida, o melhor conto de Mowgli. Juro, esse, quando eu contei pras crianças no acampamento, foi o que elas ficaram sem piscar de tanta tensão.
Porque os dholes, os cães vermelhos das planícies indianas, estão invadindo a selva, e eles vêm em excursão sangrenta, para matar tudo o que vêem.
Do começo perfeito, com o pheeal (grito de morte de um lobo) deixando a todos de cabelo em pé, passando pelo meio, quando o conselho de Kaa faz com que Mowgli arrisque sua vida como nunca antes, até o final, com a batalha épica contra os cães vermelhos, esse é sem dúvida a obra prima do livro: aterrorizante, desesperador, épico, o conto poderia fechar a série da vida de Mowgli com maestria.
Só lendo para experienciar esse conto que impressiona de tão genial.
O Despertar da Primavera
E Mowgli chega à idade adulta. Quase todos os que conhecia na selva já estão mortos. Os que sobraram estão pouco se importanto com sua crise existencial, já que é primavera e todos estão ocupados com seus afazeres.
Entediado, deprimido e irrequieto, Mowgli vaga pela floresta sem saber o que lhe acomete.
O conto é mais introspectivo, menos divertido, e é sem dúvida o conto mais sério de Mowgli. É muito tocante, mas demorei a perceber sua qualidade pelo motivo simples de que eu não entendia o tema da história quando era mais nova – claro, se o tema é a passagem para a vida adulta, o que uma menina de doze anos ia entender?
Mas o conto faz o necessário: termina a história de Mowgli de forma tocante, simples e direta, com elementos simbólicos permeando tudo.
Outros Contos
O Milagre de Purun Baghat
Olha, vou dizer que esse é um conto meio deslocado no livro, e é pelo seguinte: mesmo que os outros contos sejam um pouco mais adultos, eles ainda são obviamente escritos para crianças, com tramas e aventuras de acordo.
Só que esse conto fala de como um bem sucedido funcionário do governo indiano “morre” – ou seja, abandona a vida material – e vira um monge sem casta, indo viver numa casinha nas montanhas.
É um conto mais complexo, que não é fácil de entender, e que tem aquela característica do autor quando ele escre
ve as coisas como os indianos entendem e só depois explica o que está acontecendo pros leitores normais.
Não é uma história ruim, muito pelo contrário, mas tem um clima bem diferente, e merece ser lida depois que a criança leitora tiver crescido.
Jacala, o Crocodilo
Outro conto dos mais favoritos, esse é de um sarcasmo e crítica sociais intensos, mesmo sendo um diálogo entre três animais.
O nome do conto em inglês é muito mais pertinente (The Undertakers é algo como Os Coveiros, mas Undertaker em inglês é o agente funerário também), porque a conversa é entre um crocodilo, um chacal e um tipo de cegonha, todos eles sobrevivendo da carniça encontrada num grande rio da Índia.
O crocodilo, ancião, é obviamente o mais venerável entre os três, por ter vivido tanto, e o chacal e a cegonha se limitam a concordar com as reclamações dele e fazer comentários quando o bichão não está escutando.
A idade do crocodilo e as histórias que ele conta fazem com que o leitor tenha uma idéia muito boa do desenvolvimento da Índia sob o governo inglês.
Quiquern
Duas crianças inuits (esquimós) saem pelas planícies ermas do pólo norte numa busca desesperada por comida para salvar sua aldeia.
No caminho eles são guiados pelo espírito Quiquern, de oito patas e duas cabeças.
Assim como em A Foca Branca, conto do livro anterior, Kipling sai da Índia e vai para o norte, com contos que lembram muito a pegada do contemporâneo Jack London.
Mesmo saindo do seu “habitat natural”, o autor não fica sem graça, e a história é sempre empolgante.
The Second Jungle book (1895)
de Rudyard Kipling (Reino Unido)